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Após um longo inverno de espera, eis que ressurjo com uma resenha fresquinha de um filme chinês não tão conhecido por aqui. 

 

BALZAC e a Costureirinha Chinesa (Título original: Xiao Cai Feng). Direção: Dai Sijie. Intérpretes: Xun Zhou; Kun Chen; Ye Liu e outros. França, China: Les Productions Internationales “Le Film”, 2002. 1 DVD (116 MIN), Drama, Color. 

 

Baseado no romance homônimo do próprio diretor do filme, Dai Sijie, “Balzac e a Costureirinha Chinesa” conta a história de dois amigos, Luo (Chen Kun) e Ma (Liu Ye), filhos de pais considerados reacionários ao governo de Mao Tsé-Tung, que são enviados para a montanha da Fênix Celestial, onde seriam “reeducados” por camponeses. Lá, eles conhecem a Costureirinha chinesa (Zhou Xun), por quem ambos se apaixonam, e se tornam grandes amigos. 

 

A história do filme se passa na China, durante a Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung, o controverso arquiteto e fundador da atual República Popular da China, no fim da década de 60. Na chamada “Revolução Cultural”, Mao criou o processo de “reeducação”, em que vários tipos de livros eram proibidos, principalmente os de origem estrangeira, como de Balzac, Flaubert e Dostoiévski, que eram considerados subversivos. Muitas escolas e universidades foram fechadas e os jovens reacionários e intelectuais eram mandados para as montanhas para realizarem trabalhos pesados, carregando excrementos de humanos e animais, além de serem obrigados a trabalhar nas minas. É durante esse processo de “reeducação” que Luo e Ma conhecem a Costureirinha - como ela é sempre referida, pois seu nome verdadeiro não é revelado. E o que começa como uma sincera amizade se torna, mais tarde, em uma discreta história de amor entre Luo e a Costureirinha, embora Ma, que é o narrador, também nutrisse o mesmo sentimento pela moça, isto é, amasse-a, como seu amigo. Porém, apesar desse ar de romance presente no filme, não é esse seu foco real – ou, pelo menos, não deveria ser –, mas a importância da preservação cultural de uma nação através dos livros; aliás, não somente da literatura chinesa, mas igualmente da mundial. 

 

Paulo Freire dizia que a invasão cultural pressupõe a conquista, a manipulação e o messianismo daquele que invade. Essa premissa está ligada à questão da corrupção cultural que sofrem algumas culturas quando “invadidas” por outras estrangeiras e/ou de prestígio social. Talvez por esse medo de corromperem a milenar cultura chinesa, principalmente a camponesa, Mao tenha proibido qualquer incentivo a culturas de fora e a “eruditismos”. Entretanto, há uma grande diferença entre corrupção cultural e dialogismo cultural. Privar um povo de descobrir o mundo, do conhecimento, é privá-lo de viver e de transformar o meio no qual vive. E é justamente fundamentados nesse dialogismo cultural que os garotos não se submetem à ignorância inerente àquele sistema e veem na literatura uma forma de redenção. Quando souberam que um outro “reeducando” possuía uma caixa contendo diversos clássicos da literatura mundial, resolveram pedir-lhe os livros emprestados, ao passo que o dono dos livros, Quatro Olhos – como era chamado –, negou-se a emprestá-los, dizendo que já se desfizera deles. Os três amigos decidem, então, roubar a tal caixa. Após o ato, por meio daqueles livros, Luo e Ma ensinam a costureirinha a ler e a escrever – tudo isso, obviamente, às escondidas, pois os livros eram proibidos pelo chefe da comuna na aldeia. Os dois amigos se encarregavam, ainda, de contar essas histórias aos aldeões à noite, após seus afazeres cotidianos, de modo que todos se encantavam com elas. 

 

O filme, destarte, permite várias análises temáticas, sendo as capitais: o triângulo amoroso entre as personagens principais; a revolução cultural maoísta; e a literatura como transformadora idiossincrática e cultural. Como já foi dito anteriormente, a despeito das diversas óticas possíveis, as duas primeiras servem, na verdade, como pano de fundo para a verdadeira temática, que é a terceira. Com os ensinamentos dos meninos, a Costureirinha finalmente aprende a ler e a escrever, o que lhe permite enxergar [e a querer enxergar] o mundo com outros olhos. Ela decide, ao final, partir da aldeia e tentar a sorte na cidade grande. Eis aqui o grande fator que ratifica a tese inicial. Inspirada nas diversas leituras, como ouvinte de seu amado Luo, ela resolve deixar sua vida camponesa para trás e se libertar de sua condição enquanto “costureirinha”. Claro que um contraponto deve ser salientado também: a capacidade do sujeito de desenvolver, através desses processos epistemológicos, a criticidade e a consciência de seu papel como [co]transformador do mundo. Absorver novas informações sem processá-las reflexivamente não passa de mera manipulação cognoscível, o que vai de encontro ao preceito do dialogismo cultural. Sem consciência crítica do que se está lendo-aprendendo, o sujeito cai na corrupção cultural, o que tão acontece em nossos dias atuais. “A propaganda, os slogans, os “depósitos”, os mitos são instrumentos usados pelo invasor [cultural] para lograr seus objetivos: persuadir os invadidos de que devem ser objetos de sua ação, de que devem ser presas dóceis de sua conquista. Daí ser necessário ao invasor descaracterizar a cultura invadida, romper seu perfil, enchê-la inclusive de subprodutos da cultura invasora” (Freire, 2011, p. 49-50). 

 

Histórias literárias, não somente as escritas como também as orais, carregam consigo as marcas de uma determinada cultura. Isso pode influenciar ou não a cultura vigente do “invadido”. Cabe ao invadido saber distinguir o que pode ser proveitoso ou não e desfrutar, assim, do que melhor lhe convir, sem perda de sua identidade cultural. Para tanto, porém, é necessário que o invadido disponha de certos mecanismos de reconhecimento e de tomada de consciência enquanto sujeito cultural. O avô da Costureirinha não gostou de sua partida, o que nos remete ao início do filme, quando ele diz, sobre seu contato com os livros, que nada de bom poderia sair daquilo. Mas, afinal, a Costureirinha fez certo ou fez errado em deixar a aldeia? Ela foi egoísta ou apenas transformadora? Ou será que seu avô é que foi egoísta e ignorante demais para perceber que sua neta havia se “transformado”? De fato, conforme Paulo Freire, “Conhecer é tarefa de sujeitos, não de objetos. E é como sujeito e somente enquanto sujeito, que o homem pode realmente conhecer”. O que corrobora com a premissa de que livros não transformam. Pessoas/sujeitos buscam transformações por meio de diversos artifícios. Literatura transforma se houve no âmago do sujeito o anseio do aprender, do imergir, no que é ali ofertado. Se estivermos fechados ao conhecimento, achando-nos sabedores de todas as coisas e posicionando-nos como imutáveis, não haverá recepção transformadora, quiçá libertação. Isso diz algo sobre a decisão da Costureirinha. 

 

Baseado no Best-seller homônimo internacional e indicado ao Globo de Ouro como melhor filme estrangeiro, “Balzac e a Costureirinha Chinesa”, portanto, não é um filme que fala sobre a Revolução Cultural chinesa em si, mas que fala sobre o poder transformador da literatura na vida das pessoas ao revelar que o mundo é repleto de possibilidades. O filme encanta pela sua simplicidade e delicadeza com que é feito e desenvolvido, como só os orientais sabem fazer - para quem curte o cinema oriental, como eu, sabe do que estou falando. Longe dos clichês hollywoodianos, consegue prender a atenção do telespectador do início ao fim sem se tornar maçante. Para quem gosta da cultura chinesa e de filmes cults, é uma ótima pedida – principalmente para aqueles que corroboram a ideia de que a literatura pode ser, sim, transformadora. 

 

Sapere aude!

  

 

  Confira abaixo o filme completo disponível no youtube

 

 

 

                               

O Ambíguo Poder da Literatura

Balzac e a Costureirinha Chinesa fala de amor, política e a descoberta de si

 

Bruno Lima - 03 /02/2015

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